Carta a uma mãe que é minha

                                                             Nenhures, 7 de Novembro de 2020


Querida Mãe

Olá minha Mãe, como estás? Desculpa passar tanto tempo sem te dizer nada! Tive de me afastar de ti. E continuo a precisar. Não tenho andado em mim...
 O meu mais que tudo deixou-me. Tenho andado triste, sem saber onde ir, a quem contar, o que será de mim daqui para a frente. Estou confusa. Ele abandonou-me e nem para trás olhou. Foi embora e deixou-me a cuidar da falencia. É um cobarde.
 Estou muito revoltada, de certa forma a culpada fui eu. Fiquei a ouvir discos velhos sentada na poltrona enquanto ele desfalecia sozinho... até que não se voltou a levantar. E de uma hora para outra desaparece?! Como não me apercebi? Com o que é que eu estaria entretida? Porque é que continuo sem o procurar? Nem eu mãe, nem tu sabemos esta resposta.
 Minto, claramente. Obvio que sabemos! Sabemos que deixamos que nos fizessem de burras. Que nos tirassem tudo e fingir que não levavam nada. Medo? Fomos fantoches: agora nas mãos deste, depois nas mãos daquele. Para nós estava tudo bem, afinal, o fulcral era ter o pão e o vinho em cima da mesa. Parecemos umas putinhas. Só nos fodem e nós estamo-nos nas tintas para isso, fuma mais um cigarro, puxa mais dois do maço... e no final levam-nos o pão e sorrimos, anestesiadas, pois o vinho ficou. E a nossa vida é este placebo. Qualquer dia acordamos e nem nos lembramos de nossa terra.
 Sabes uma coisa, afinal não gosto assim tanto de ti, Mãe. Afinal és pior que eu, és uma ingénua, uma ignorante. Deixaste-me caminhar em direcção a um nada. Cheguei ao nada e não vi ninguém, tentei voltar para trás e não vi caminho nem merda nenhuma! Onde é que estavas? Conta-me, preciso de saber! Julgo ver-te no alpendre dessa tua morada agarrada ao passado que não nos levou a um Estado.
Já desejei esquecer-te, assim como rezo (ainda e não entendo porque o continuo a fazer...) todos os dias para esquece-lo, o meu mais que tudo, o meu Portugal. Caiu na lama e não o limpei, quero lá saber! Quando eu lhe disse que ia estudar, ele permitiu e apoiou. Assim que tinha tudo planeado, prega-me uma rasteira e tira-me a inocencia. Depois, magoou-se numa mão! Mandei-o para o camandro. Quando eu lhe disse que o patrão pagava mal, riu-se de mim e disse que eu é que gasto muito. Foi atropelado, levei-o ao hospital. Gritou comigo porque paguei a conta do hospital! Tenho cancro e deixa-me, abandona-me porque não posso trabalhar e ele por mim também não pode. Arre! Gente maluca, não sabem fazer-se Pessoa e chamar pelo V Império! Só miséria, só o pensar pequeno. Chega! Cansei-me daquele cabrão. Um dia vou atrás dele, se tiver vontade... um dia digo-lhe que temos um filho, se ele quiser ouvir-me. E se ele nascer, da maneira que as coisas andam, junto-me a uns quantos e fazemos a festa do caixão. Já estou a dizer bacoradas! Claro que o meu Portugal vai voltar, eu vou ficar aqui sentada a fumar cigarros e envelhecer tal como tu Mãe. Não ensinaste a saber-me ser de outro modo. Também não estou para pensar mais sobre o assunto, tal como tem sido. Prefiro acreditar que o meu mais que tudo, o meu Portugalinho vai conseguir voltar-me. Vai sim, a gente precisa. Ele foi muito porco mas olha que eu também não fui mais decente do que ele. Eu sujeitei-me, e deixei-o levantar-me a mão e cuspir-me. O estupor do Pai também te fazia isso não era? Deixaram-nos os dois no maior dos esgotos. Eu fiquei com o vinho pelo menos! Já tu Mãe, tu que te chamas Democracia, perdeste a dignidade. Foste ostracizada e todos se aproveitaram de ti. Já de mim, um apenas! A mim ninguém me cala, mesmo que esteja errada. A mim ninguém me espancou. Já a ti, desmembraram-te! Chora, é bem que chores! Eu rio-me de ti. Como tu te transformaste monstruosamente. Eu fiquei a pagar as dividas, mas pelo menos continuo a ter pernas, a ter boca para falar. Continuo a sentir-me viva! E tu, hãn?? Envergonhas-te! É possivel que daqui a algum tempo me passe toda a fúria que tenho por ti e pelo meu mais que tudo. É possivel que vá atrás de ti e dele. Não sei. Logo se vê. Vou ficar por aqui a beber tinto enquanto penso no resto da minha vida e o que irei fazer sozinha neste buraco. Por agora, quero que te fodas bastante. Assim como eu me fodo a tentar ter uma vida sem fazer sentido para nenhum dos Nós!



                                                   De qualquer das formas um beijo,
                                                    a tua filha - Liberdade.